O Grupo de Trabalho em Propriedade Intelectual da Rede Brasileira pela Integração dos Povos (GTPI/Rebrip) é um coletivo de 18 organizações de diversas partes do Brasil que atua há quase 20 anos na interface entre propriedade intelectual e acesso a medicamentos. O grupo reúne especialistas, organizações do sociedade civil e usuários do SUS e tem contribuído para pautar a perspectiva do interesse público na formulação de políticas públicas.

Um tema de grande relevância para o grupo é o licenciamento compulsório, por ser esta uma medida legal, legítima e efetiva para assegurar acesso a medicamentos. Trata-se de uma medida de grande relevância para a saúde pública, pois remedia os impactos negativos que uma situação de monopólio, decorrente de uma patente aprovada, pode ocasionar no acesso a medicamentos e na realização do direito a saúde. Não é por outra razão que o uso desta medida é bastante frequente no mundo. Entre 2001 e 2016, a licença compulsória foi usada 100 vezes, num universo de 89 países, para garantir acesso a medicamentos essenciais. Além disso, cabe notar que ao longo da história, os países que mais fizeram uso desta medida foram Estados Unidos e Canadá. No entanto, no Brasil, país com reconhecido destaque no campo da diplomacia da saúde e na defesa do acesso universal a medicamentos, o uso da licença compulsória ocorreu apenas uma vez, em 2007.

Isso revela que a medida, embora incluída no ordenamento jurídico brasileiro, ainda apresenta muitos entraves na sua implementação. Em um contexto de urgência como a pandemia do novo Coronavírus, onde acesso a diagnósticos, vacinas e medicamentos é um elemento chave para o sucesso das intervenções de saúde pública e onde a licença compulsória se justifica por diversos argumentos, tais entraves podem significar inúmeras mortes e sofrimento para a população brasileira. Por isso se faz necessário atualizar o marco legislativo brasileiro para acelerar o licenciamento compulsório das tecnologias de saúde relevantes para o enfrentamento ao COVID-19, em especial por meio de uma proposta que inclua novos parágrafos e incisos no artigo 71 da Lei nº 9.279 para tratar de licença compulsória nos casos de emergência nacional, pois se trata do caminho mais inovador e efetivo para que este licenciamento compulsório seja assegurado pelo parlamento brasileiro de forma imediata.

Abaixo listamos alguns motivos que fazem desta proposta de alteração a mais relevante e a mais desejada do ponto de vista das organizações que atuam em defesa da saúde:

 1) O Brasil já possui marco normativo para licença compulsória. No entanto, somente o Ministério da Saúde pode iniciar o processo. Essa proposta de projeto de lei dá protagonismo ao parlamento e acelera o procedimento da licença compulsória em situações de emergência, o que é fundamental em tempos de pandemia.

2) Esse texto coloca o Brasil na vanguarda em termos legislativos, reunindo as melhores experiências internacionais sobre o tema e se baseando na opinião de especialistas.

 3) Esse texto dá ao Brasil um mecanismo de celeridade capaz de retirar amarras partidárias, uma vez que vincula a licença compulsória a declarações de emergência de saúde pública de importância internacional e nacional, que são de caráter técnico. Isso garante, ao mesmo tempo, segurança jurídica e celeridade, o que é fundamental para enfrentar crises dessa gravidade e urgência.

4) Neste contexto de crise de saúde global, diversos atores do setor privado reconhecem que as barreiras impostas por patentes devem ser removidas. Nesse sentido, a empresa americana Abbvie abriu mão de suas patentes para um medicamento que pode ser útil no tratamento de Covid-19, a empresa alemã Roche abandonou seu monopólio em torno da fórmula de um importante reagente para diagnostico da doença, a empresa americana Gilead abandonou direitos de exclusividade que havia adquirido em torno do medicamento Remdesivir, que tem um grande potencial para tratamento e cura; e a empresa americana Medtronic licenciou seus direitos e desenhos industriais sobre ventiladores pulmonares para que qualquer um possa produzir.

5) Essa crise exige que a máxima capacidade produtiva seja explorada, incluindo a de produtores genéricos, para que produtos efetivos e uteis para diagnosticar, prevenir e curar a doença sejam produzidos em quantidades suficientes, de forma rápida e por preços que todos os países possam pagar. A licença compulsória permite que haja essa produção massiva e em tempo hábil, evitando crises de abastecimento que são observadas quando há uma dependência de uma única empresa.

6) Muitos países estão revisando suas legislações em torno da licença compulsória, como Canadá, Alemanha, Austrália e Espanha, no sentido de facilitar o uso desta medida. Em outros países, os parlamentares estão apelando ao poder Executivo para que faça uso da medida, como no Chile e no Equador. Além disso, alguns países estão avançando nas etapas necessárias para que a licença compulsória seja usada, como na Colômbia. Em Israel a medida já foi usada no contexto desta crise. Ao adotar um procedimento simplificado para licença compulsória em emergências, que garantirá a efetivação da medida assim que o PL for aprovado, o Brasil será pioneiro e referência para outros países. Além disso, esta proposta deixa o país preparado para garantir o acesso a medicamentos e outros bens de saúde em pandemias futuras.