Porém, quatro outros indivíduos tratados com o mesmo esquema não mantiveram a supressão viral

Jorge A. Beloqui (GIV, ABIA, RNP+), a partir de artigos de Liz Highleyman (aidsmap.com), R. Jefferys (TAG), e Jon Cohen (Science)

Um homem em São Paulo que não tem vestígios do HIV após mais de 15 meses sem antirretrovirais – pelo menos de acordo com os testes realizados até agora – pode representar o primeiro caso de cura funcional sem os riscos de um transplante de células-tronco, de acordo com informe apresentado na 23ª Conferência Internacional da Aids (AIDS 2020: Virtual).

Como parte de um ensaio clínico, o homem de 35 anos acrescentou dois antirretrovirais (ARV) a seu tratamento: o inibidor da integrase dolutegravir e o inibidor de entrada maraviroc. Este processo de acrescentar ARV à terapia padrão eficaz chama-se de “intensificação”. Além disso, ele recebeu nicotinamida, uma forma solúvel em água de niacina ou vitamina B3.

Ele sofreu uma interrupção de tratamento monitorada perto de março de 2019. Mais de 15 meses depois, ele continua a ter RNA de HIV indetectável (a forma do material genético viral medido em um teste de carga viral usual), além de DNA de HIV indetectável (a forma do material genético que se integra à célula, e compõe o reservatório viral).

Porém, especialistas alertam contra interpretações apressadas deste caso, pois o resultado envolveu apenas um único indivíduo e ainda não foram realizados testes extensivos para detectar traços de HIV em vários locais do corpo do homem.

“O fato de ser um caso único sugere que ele pode não ser real”, disse Steven Deeks, da Universidade da Califórnia em San Francisco, ao aidsmap. “Sabemos que algumas pessoas podem alcançar o que parece ser remissão apenas com medicamentos antirretrovirais. Pode ser simplesmente uma pessoa que teve sorte com antirretrovirais.”

Histórico
Até agora, somente duas pessoas parecem ter sido curadas do HIV. Timothy Ray Brown, anteriormente conhecido como Paciente de Berlim não apresenta evidências de HIV com capacidade de replicação em nenhum lugar do corpo há mais de 13 anos. O segundo homem, apelidado de Paciente de Londres, ainda não possui vírus detectáveis após quase três anos sem terapia antirretroviral (TAR).

Ambos os homens receberam transplantes de medula óssea para tratar leucemia ou linfoma usando células-tronco de um doador com uma mutação genética rara conhecida como CCR5-delta-32, que resulta na falta de co-receptores CCR5 nas células T, porta de entrada para a maioria dos tipos de HIV infectar células. Antes dos transplantes, eles receberam quimioterapia para matar suas células imunes cancerígenas, permitindo essencialmente que as células-tronco doadas reconstruíssem um novo sistema imunológico resistente ao HIV.

Mas esse procedimento é muito perigoso para pessoas cujas vidas ainda não estão ameaçadas pelo câncer avançado. Além disso, requer intervenção médica intensiva, é extremamente caro e provavelmente não poderia ser ampliado o suficiente para torná-lo viável para milhões de pessoas vivendo com HIV em todo o mundo.

Isso levou pesquisadores a perguntar se a combinação certa de medicamentos poderia oferecer um caminho mais seguro e mais barato para remissão de longo prazo – ou, finalmente, uma cura.

Uma maneira mais fácil de alcançar a remissão?
O Dr. Ricardo Diaz (na foto), da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Brasil, e Andrea Savarino, do Instituto Italiano de Saúde, de Roma, e suas equipes realizaram um ensaio clínico conhecido como SPARC-7 para avaliar múltiplas intervenções destinadas a reduzir o tamanho do reservatório de HIV.

Este reservatório é composto por HIV latente integrado em células hospedeiras inativas, principalmente células T. Os antirretrovirais não conseguem atingir esse vírus oculto, mas quando o tratamento é suspenso por qualquer motivo, e as células forem reativadas, elas poderão começar a produzir novas cópias do vírus.

O estudo
O estudo recrutou adultos HIV-positivos que estavam em seu primeiro esquema antirretroviral, tinham supressão viral por mais de dois anos e nunca tiveram uma contagem de CD4 abaixo de 350 células/mm3.

Foi iniciado em 2015 e os 30 participantes com HIV foram divididos em seis grupos de cinco pessoas cada um, que descrevemos a seguir:

- Grupo 1: continuou com um esquema padrão de TAR e serviu como controle, enquanto os outros cinco grupos receberam as seguintes intervenções adicionais:
- Grupo 2: dolutegravir e o inibidor de CCR5 maraviroc (que também relatou anteriormente exercer efeitos de reversão da latência do HIV);
- Grupo 3: dolutegravir, maraviroc e nicotinamida (uma forma solúvel em água de vitamina B3 que pode ter atividade de reversão da latência do HIV; 500mg duas vezes ao dia);
- Grupo 4: dolutegravir, maraviroc e auranofina (um medicamento antiproliferativo);
- Grupo 5: dolutegravir e uma vacina terapêutica de células dendríticas
- Grupo 6: dolutegravir, uma vacina terapêutica para células dendríticas, auranofina e nicotinamida.

Os resultados do estudo foram apresentados em várias ocasiões anteriormente, inclusive na Conferência Internacional de AIDS de 2018, em Amsterdam, na CROI 2019 e no Workshop de Persistência do HIV 2019. Os resultados dos participantes que receberam auranofina também foram objeto de um artigo publicado no ano passado. Em geral, os declínios nos níveis de DNA do HIV (uma medida indireta do reservatório de HIV) foram os maiores entre os que receberam as múltiplas intervenções no Grupo 6.

O desenho original do estudo não incluiu uma interrupção do tratamento analítica (ATI), mas o protocolo foi posteriormente revisado e 25 dos participantes foram submetidos a uma ATI aproximadamente 2,5 anos após o final do período de estudo de 48 semanas (durante o qual as intervenções foram administradas).

A apresentação no Workshop de Persistência do HIV de 2019 relatou que dois participantes no Grupo 6 e um no Grupo 3 exibiram cargas virais indetectáveis de HIV após a ATI. No entanto, após cerca de 16 semanas, as duas pessoas do Grupo 6 mostraram evidências de recuperação da carga viral e reiniciaram a TAR.

Como Savarino explicou em uma entrevista ao aidsmap antes de sua apresentação em AIDS 2020, no Grupo 3 a nicotinamida foi escolhida porque parece combater o HIV por múltiplos mecanismos. Disponível como um suplemento oral barato, a nicotinamida está sendo estudada como tratamento contra o câncer por causa de suas propriedades estimulantes do sistema imunológico. Ajuda a impedir que as células T esgotadas cometam suicídio (apoptose), inibindo a atividade de enzimas chamadas PARPs que reparam o DNA quebrado. Também pode atuar como um inibidor da histona desacetilase (HDAC) que mantém as células T fora de um estado latente. O maraviroc também pode atuar como um agente de reversão da latência, além de seu efeito mais conhecido de bloquear a entrada do HIV nas células.

Único indivíduo permanece em remissão
O brasileiro que permanece em remissão foi diagnosticado com HIV em outubro de 2012, época em que apresentou a menor contagem de células CD4 (372 células/mm3) e carga viral (mais de 20.000 cópias/ml) característica de infecção crônica. Dois meses depois, ele iniciou o tratamento com efavirenz (EFZ), zidovudina (AZT) e lamivudina (3TC), substituindo zidovudina pelo tenofovir disoproxil fumarato (TDF) em 2014.

O homem se inscreveu no ensaio clínico em setembro de 2015 e iniciou o regime intensificado de TAR mais nicotinamida. Entre os 30 participantes que receberam vários esquemas de investigação no estudo, ele foi o único que experimentou blips virais de baixo nível durante o tratamento experimental (nas semanas 16 e 24), mas sua carga viral permaneceu indetectável.

O que é:
Blip
é um aumento detectável e temporário da carga viral que ocorre depois de que a TAR tornou a carga viral indetectável. Em geral não deve superar os 1000/ml. Blips isolados não são considerados um sinal de falha do tratamento

Hla (da sigla em inglês para Human Leukocyte Antigen System) é um grupo de moléculas da superfície de quase todas as células do organismo. Elas contribuem na identificação de agentes externos ao organismo para montar uma resposta imunológica.   

Remissão Cura significa que o HIV parece ter desaparecido para sempre. Remissão é um termo mais conservador: o vírus está sob controle no corpo, mas talvez não para sempre.

Reservatório O ‘reservatório de HIV’ é um grupo de células infectadas pelo HIV, mas que não produzem novo HIV (estágio latente da infecção) há muitos meses ou anos. Reservatórios latentes de HIV são estabelecidos durante o estágio inicial da infecção pelo HIV. Embora a terapia antirretroviral possa reduzir o nível de HIV no sangue para um nível indetectável, os reservatórios latentes de HIV continuam sobrevivendo (um fenômeno chamado inflamação residual). As células infectadas latentemente podem ser despertadas novamente para começar a reproduzir ativamente os virions do HIV se a terapia antirretroviral for interrompida.

Após completar 48 semanas com essa combinação, ele retornou ao seu esquema anterior de três medicamentos, posteriormente trocando efavirenz por nevirapina e, finalmente, dolutegravir. Durante todo o tempo, ele manteve a supressão viral.

Em março de 2019, ele iniciou uma interrupção do tratamento analítica, interrompendo sua terapia antirretroviral sob supervisão médica. Hoje, sua carga viral permanece indetectável de acordo com os exames de sangue do RNA do HIV feitos a cada três semanas. Seu último teste foi em 22 de junho de 2020, o que significa que ele mantém a supressão viral por mais de 65 semanas sem antirretrovirais. Curiosamente, durante o período de intensificação com nicotinamida, este homem foi o único dos cinco do Grupo 3 que teve o vírus duas vezes detectado em exames de sangue padrão. Para Diaz, isso sugere que as células infectadas latentemente foram despertadas, levando a blips na produção viral.

As células CD4 do paciente permaneceram geralmente estáveis durante o esquema intensificado com antirretrovirais, aumentaram após o retorno à terapia padrão com três medicamentos e depois caíram após o início da interrupção do tratamento.

Vários marcadores da ativação das células CD8 – um tipo de células T que combatem o HIV – diminuíram após o início do esquema intensificado e permaneceram abaixo do nível basal.

Observar outros parâmetros pode fornecer pistas sobre se o HIV permanece presente, mas sob controle, ou se realmente foi eliminado.

No paciente, o nível de DNA do HIV nas células imunológicas do sangue periférico aumentou após o início do esquema experimental – sugerindo que o tratamento pode ter reativado as células latentes em reservatórios –, mas caiu para um nível indetectável depois que ele retomou a TAR padrão. Permaneceu indetectável durante a interrupção do tratamento.

O DNA do HIV foi detectável em amostras de tecido retal e sangue no final do período de intervenção de 48 semanas. As medições dos níveis sanguíneos de DNA do HIV mostraram um declínio durante o tratamento com esquemas usuais de TAR, tornando-se indetectáveis imediatamente antes da ATI, iniciada em março de 2019.

Após a ATI, a carga viral não se recuperou e permaneceu indetectável desde então (a última medida disponível no momento da apresentação era de 22 de junho de 2020). Os slides que mostram a contagem de CD4 e a proporção de CD4: CD8 ao longo do tempo indicaram um declínio notável logo após a ATI, o que é surpreendente, dada a aparente falta de recuperação da carga viral no sangue, mas não foram relatados mais dados longitudinais sobre essas medidas.

Os níveis de anticorpos para o HIV avaliados pelo ensaio de combinação antígeno / anticorpo Abbott ARCHITECT diminuíram ao longo do acompanhamento, com exceção de um possível ligeiro aumento imediatamente após a ATI. Os resultados de um teste rápido de anticorpos para HIV agora são negativos (em alguns relatos da mídia, isso foi erroneamente representado como indicando que nenhum anticorpo HIV é detectável, o que não é exato).

Análises a realizar e perguntas
Análises mais aprofundadas do HIV no tecido intestinal, nos linfonodos e em outros locais - como aquelas realizadas em Timothy Brown – serão necessárias para mostrar se o homem é de fato funcionalmente curado. No entanto, Savarino disse ao aidsmap que esses testes mais invasivos foram suspensos devido às restrições do Covid-19 nos serviços de saúde no Brasil.

Notavelmente, dos outros 30 participantes do estudo, nove receberam nicotinamida e 14 receberam dolutegravir e maraviroc. Embora não esteja claro se todos esses outros participantes estavam entre os que foram submetidos à ATI, não foram observados exemplos adicionais de ausência igualmente prolongada de rebote da carga viral. Isso parece argumentar contra um efeito forte dessas intervenções. Além disso, os níveis de DNA do HIV continuaram a declinar muito tempo após a interrupção das intervenções no participante cuja carga viral continua indetectável.

Outra incógnita é a rapidez com que o homem iniciou a TAR após ser infectado pelo HIV. Estudos demonstraram que uma pequena porcentagem de pessoas que iniciam o tratamento ARV logo após serem infectadas tem uma chance maior de controlar o vírus por períodos prolongados se interromperem a tomada dos medicamentos, presumivelmente porque nunca construíram grandes reservatórios de células infectadas. O paciente de São Paulo iniciou o tratamento 2 meses após o diagnóstico em outubro de 2012. Como a maioria das pessoas infectadas pelo HIV, ele não sabe ao certo quando ocorreu a transmissão, mas suspeita que foi em junho de 2012. A única certeza é que ele testou negativo em 2010.

É importante ressaltar, Savarino disse ao aidsmap, quatro outros indivíduos tratados com o mesmo regime intensificado não mantiveram a supressão viral.

Deeks pediu cautela sobre a “superinterpretação” dos resultados deste caso, o que neste momento não sugere nenhuma intervenção que as pessoas que vivem com HIV devam realizar por conta própria. Em particular, as pessoas não devem começar a tomar nicotinamida ou niacina, o que pode causar um efeito colateral desconfortável em altas doses.

Em entrevista à imprensa, o copresidente da conferência, Anton Pozniak, do Chelsea e do Hospital Westminster, lembrou que antes já ouvimos falar de muitas outras curas em potencial – incluindo o famoso bebê do Mississippi (ver Boletim Vacinas 28 e 29 em giv.org.br) , que manteve a supressão viral dos antirretrovirais por mais de dois anos antes do vírus retornar. Porém, até agora estes casos acabaram em desapontamento. Outros casos potenciais de cura do HIV receberam intensa atenção da mídia.

“Eu certamente encorajaria as pessoas a não pularem de felicidade com isso, que pode não ser real e pode realmente causar danos”, disse Pozniak. “Eu não incentivaria ninguém a correr para a loja de alimentos naturais e adquirir esse medicamento. E não pare de tomar seus antirretrovirais.”

Sharon Lewin, pesquisadora da cura do HIV que dirige o Instituto Peter Doherty para Infecção e Imunidade, em Melbourne, na Austrália, considera a resposta de anticorpos intrigante. Mas ela ressalta que não é um experimento controlado e convincente. “Precisamos ir além dos relatos de casos de remissão do HIV”, diz Lewin. “Eu ficaria super empolgada em ver remissão a longo prazo em vários participantes de um ensaio clínico. É disso que o campo precisa para realmente avançar.”