Por Rodrigo Pinheiro (*)
Os 40 anos do surgimento da pandemia de HIV/aids no mundo, completados neste ano de 2021, trouxeram grandes avanços para o controle, tanto da infecção pelo HIV quanto para a síndrome da imunodeficiência adquirida. O tratamento do HIV, com medicamentos cada vez menos tóxicos e mais aceitáveis pela maioria de seus afetados, além de dificultar a progressão para a aids, tem contribuído para o avanço da prevenção, com o uso da profilaxia pré-exposição (PrEP) e impedido a infecção com a administração da profilaxia pós-exposição (PEP).
As dezenas de comprimidos diários de zidovudina (AZT) ingeridos pelas pessoas com aids a partir do final dos anos 1980 foram reduzidos a um ou dois comprimidos por dia, atualmente. Em breve, Europa e EUA começarão a prescrever tratamentos de longa duração, nos quais as doses são administradas mensalmente ou a cada dois meses, os quais esperamos tê-los brevemente também em todo o Brasil.
O perfil da epidemia também mudou consideravelmente. Assim como em todo o mundo, no Brasil os primeiros casos foram notificados em jovens homossexuais masculinos da classe média e outros homens que fazem sexo com homens. Quase paralelamente ampliaram-se para usuários e usuárias de drogas injetáveis e suas parcerias sexuais, alcançaram trabalhadoras e trabalhadores sexuais e pessoas com hemofilia.
Os chamados “grupos de risco” tiveram seu conceito ampliado para o de “comportamento de risco” e, em seguida, chegamos ao conceito de vulnerabilidade, inclusive porque a própria pandemia se expandiu. No Brasil, com esta expansão conceitual, talvez provocada pela própria expansão epidemiológica, vimos a heterossexualização, a feminilização, a interiorização e, principalmente, a pauperização da epidemia.
Atualmente, a pandemia de covid-19 começou pela classe mais favorecida da sociedade, disseminou-se pela classe média e devastou as periferias das grandes, médias e pequenas cidades. Ela também trouxe de volta os grupos de risco, mas, infinitamente mais contagioso que o HIV, o SARS-CoV-2 alastrou-se rápida e eficazmente com o incentivo do presidente da República e a inércia de um Ministério da Saúde militarizado.
Essencialmente democrático, estudos têm registrado o avanço do HIV/aids sobre as pessoas mais vulneráveis socialmente, em especial as pessoas pretas, pobres e periféricas. Em meados dos anos 2000 um respeitado infectologista do Instituto de Infectologia Emilio Ribas disse ao programa de rádio da Câmara dos Deputados que não era preciso “ser nenhum craque em estatística ou epidemiologia para saber que a Aids iria se tornar uma doença de pessoas pobres, de terceiro mundo”.
No ano passado, o então prefeito de São Paulo Bruno Covas atendeu a um pedido nosso e formou, na Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania, um comitê intersecretarial para que sejam buscadas e elaboradas políticas públicas de inclusão das pessoas vivendo com HIV e aids mais vulneráveis socialmente. Sensível ao tema desde que foi deputado estadual, Covas sabia que a epidemia de aids não era apenas uma questão de saúde pública, mas de vulnerabilidade social extrema, que explicita carências que devem ter respostas das pastas de segurança, justiça, assistência social, educação, trabalho e renda, moradia, segurança e direitos humanos.
O espectro de vulnerabilidade social cresceu assustadoramente com a pandemia de covid-19. Desemprego, perda de renda e fome aumentaram até mais que a inflação. Nem durante o período de hiperinflação se viu aglomeração de pessoas comprando ossos, revirando caçambas de lixo a procura de comida e revirando descarte de frutas, legumes e verduras nas feiras livres. Pequenos negócios fecharam definitivamente suas portas, grandes e médias empresas diminuíram de tamanho.
Em todo o Brasil, a quantidade de famílias em situação de rua é visível. Em São Paulo, a população em situação de rua, antes estigmatizada pelo uso de governamental na condução do País. Entre estas famílias estão pessoas vivendo com HIV ou álcool e outras drogas ou por problemas de saúde mental, hoje é percebida como um retrato da incompetência aids, familiares das mais de 610 mil vítimas da covid. São brasileiras e brasileiros, homens, mulheres, crianças, recém-nascidos, trabalhadores...
Não é a primeira vez que abordamos este tema, que vem se agravando muito rapidamente. A hora da urgência passou e os governos não fizeram nada ou muito pouco foi feito. O Brasil continua morrendo de aids, apesar dos avanços. O Brasil morreu muito de covid-19. E, ao que parece, agora o Brasil vai morrer sem saúde, sem emprego e com fome.
(*) Rodrigo Pinheiro é presidente do Fórum das ONG/Aids do Estado de São Paulo.
Foto: Vítor Santos/Fotos Públicas