Quando ela tinha dois filhos pequenos, contraiu HIV. Eram os anos 90 e “naquela época, o preconceito era muito, era difícil, complicado. As pessoas sempre isolavam a gente, ninguém queria chegar perto, não tinha muita orientação. Muitas pessoas se afastaram de mim. Meus filhos sofreram muito preconceito, as pessoas diziam que a mãe era aidética”.
Estudo Índice de Estigma em relação às pessoas vivendo com HIV/AIDS, do Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/AIDS (UNAIDS) no Brasil, de 2019, aponta que mais de 64% das pessoas que vivem com HIV/Aids no Brasil já sofreram alguma forma de estigma ou de preconceito. Ana Cecília é uma destas pessoas.
“Hoje os meus filhos me admiram. Hoje, eu enfrento, eu sempre enfrentei os problemas de cabeça erguida, toquei pra frente, nunca deixei ninguém falar as coisas pra mim. No começo, eu sofri demais, mas aprendi a me defender, para ninguém ‘montar’ mais em cima de mim”.
E o preconceito não é exclusivo dos anos 90. “Eu trabalhava como empregada doméstica. Não consegui mais emprego nenhum. Exigiam exame de HIV. Queriam separar pratos, copos, saíam correndo. Isso foi em 2013”.
Ana Cecília conseguiu receber o Benefício de Prestação Continuada da Lei Orgânica da Assistência Social (BPC/LOAS), no valor de um salário mínimo. Prestou o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) em 2019 e hoje cursa, com bolsa, administração de empresas em uma universidade.
O estudo do UNAIDS revela que 8 em cada dez Pessoas que Vivem com HIV/Aids (PVHA) acham muito difícil contar a outras pessoas que são soropositivas.
“Hoje é mais natural, mas muitas pessoas se afastaram de mim. Eu conheço muita gente que tem HIV e não tem coragem de dizer, têm medo das pessoas se afastarem delas. E isso é verdade, as pessoas não compreendem muito bem. Conheço meninos de 18 anos que são gays, estão com HIV e não contam para ninguém. Eu falo, não quero ficar me escondendo”.
Com a pandemia da Covid-19 e todos os cuidados que devemos ter para evitar a contaminação e todos os preconceitos aflorados, Ana Cecília acredita que, talvez, as pessoas possam refletir mais sobre preconceitos, medos, formas de contágio, inclusive sobre o HIV. “Agora que veio a Covid-19, pode ser que a situação mude”.
Depressão
Ane Aveline acredita que contraiu HIV quando foi estuprada em um ponto de ônibus, quando topou trabalhar até mais tarde em um final de ano, não conseguiu transporte da empresa e nem embarcar em um ônibus de linha na madrugada, também nos anos 90.
Foi orientada pela empresa a não comentar com ninguém e a não fazer boletim de ocorrência, mas foi demitida seis meses depois e não teve como buscar seus direitos, por conta do tempo prescrito. O marido ‘culpou’ o decote e a saia de Ane pelo estupro.
“Fiquei mal, tive uma depressão terrível, me divorciei, vivi a minha vida, empurrando com a barriga, ‘vegetei’ por bastante tempo. Até que, um dia, eu vi uma reportagem num programa de TV, a pauta era HIV. Foi a primeira vez que o assunto me chamou atenção. Ouvi a reportagem e a minha ficha caiu, precisava fazer um exame, procurar ajuda, eu poderia estar infectada, e assim fiz”.
Porém, o medo fez com que Ane demorasse para fazer o exame. E deu positivo. “Assim que eu recebi o exame, foi bem tenso, não tive preparação psicológica pela unidade de saúde, jogaram no meu colo, uma batata quente. E eu não sabia o que fazer”.
A falta de orientação no serviço de saúde quando Ane fez o exame aconteceu 20 anos atrás. Entretanto, o estudo sobre estigma e preconceito do UNAIDS de 2019 revelou que, nos 12 meses anteriores à pesquisa, 15% das PVHA sofreram algum tipo de preconceito ou discriminação em serviços de saúde.
O medo também fez com que Ane deixasse de retirar os medicamentos em algumas ocasiões, por temer o preconceito. “Acabei abrindo mão do tratamento em alguns momentos, por constrangimento em pegar as medicações, das pessoas me reconhecerem. Quando conseguia alguém (para retirar) eu pegava a medicação, quando eu não conseguia, eu ficava sem tomar”.
A experiência de Ane nos serviços de saúde também mudou a vida dela. Ane queria ter filhos e, alguns anos depois, foi no SUS que recebeu orientações da equipe de saúde e que poderia engravidar e ter filhos sem HIV. “Me orientei, fui bem atendida, bem assistida, e tenho duas filhas gêmeas, negativadas, hoje com 15 anos”.
De acordo com o estudo, as formas mais comuns de discriminação contra PVHA no Brasil são: comentários discriminatórios (46,3%), assédio verbal (25,3%), perda de fonte de renda ou emprego (19,6%) e agressões físicas (6%).
Trabalhando em outro local, Ane foi assediada por um colega que sabia de sua condição. “Não sei como ele descobriu, ele me assediava, me pressionava para ter um relacionamento com ele, dizendo que contaria às outras pessoas”. “Ele me chamava de Cidinha, eu acreditava que ele achava que meu nome era Aparecida”. As pessoas riam, debochavam, faziam ironias. 
“Um dia, alguém ficou com dó de mim e me perguntou se eu tinha HIV. E me explicou que Cidinha não era por conta de Aparecida”. Era Sidinha, com S, por conta da sigla em português da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (Sida). “Senti muita raiva, muita vergonha, eu tinha medo de perder o emprego, ele era uma pessoa influente. Sofri preconceito da parte dele e de alguns colegas dele por muito tempo. Anos depois, eu o enfrentei e tivemos uma discussão muito feia. Fui transferida e logo depois dispensada, disseram que era um ‘corte’, simplesmente, mas foi uma retaliação dele”.
E foi difícil para Ane contar para a família também. Ela estava decidida a revelar, mas ficou assustada com a reação preconceituosa da mãe diante da TV em uma reportagem sobre PVHA que assistiam juntas. “Eu travei. Pensei, minha mãe não merece saber porque ela vai me julgar, vai se afastar de mim e eu não sei se estou preparada para a reação dela comigo. Desisti de contar e contei para a minha irmã só muitos anos depois. A reação dela foi de susto, mas entendeu e me apoiou e disse que eu poderia contar com o sigilo dela”.
Ane também sente dificuldades nos relacionamentos. “Depois de divorciada, tentei ter um relacionamento e todas as pessoas, sem exceção, assim que eu falava a minha situação diziam que ‘amanhã’ me ligavam. Espero a ligação até hoje”.
Constrangimento
E como ser homossexual e conviver com o fato de que a Aids era uma ‘peste gay’? E como contar à família sobre a sexualidade e também sobre a Aids? “Parte da minha descoberta sobre ser gay tinha atrelada a ideia constante da Aids. Logo que contei para a minha mãe, lembro dela ter dito pra eu ter cuidado com a promiscuidade, já que eu podia pegar essa doença”. 
André se lembra do livro de capa azul que tinha em sua casa, com um título enorme AIDS: o que se sabe sobre, ou algo parecido, que ele folheava escondido. E do diagnóstico positivo de um amigo, quando ele tinha 17 anos e que o fato o deixou muito abalado. “Ele já estava numa situação crítica, com várias doenças oportunistas evidentes e ele quase morreu. Fui ao (hospital) Emílio Ribas algumas vezes praticamente para me despedir dele, já que era esse o prognóstico dos médicos. Era muito tenso entrar lá, lembro de ver pela janela das portas pessoas bem debilitadas com a doença e isso nunca saiu da minha memória. Meu amigo, inclusive, que está vivíssimo, teve o sarcoma de karposi e ficou esteticamente muito diferente e isso também mexeu muito comigo. Era a materialização daquelas imagens que via no livro que fuçava escondido.”
O próprio diagnóstico aconteceu quando ele tinha 25 anos e a adesão ao tratamento foi difícil. “Achei todos os serviços de saúde que fui péssimos, não tive o acolhimento necessário e passei por assistentes sociais, psicólogos e profissionais de saúde extremamente moralistas e cheio de julgamentos. Protelei bastante o início do tratamento, por conta dos constrangimentos. As filas eram para fora dos serviços e eu sempre via conhecidos”.
André precisou lidar com os próprios preconceitos e só iniciou seu tratamento quatro anos após o diagnóstico. “Felizmente estava tudo sob controle e com poucos meses de tratamento já estava com minha imunidade normal e com o vírus indetectável”.
Trabalhando em uma ONG voltada para PVHA, André costuma brincar com uma situação preconceituosa, mas que gera um certo alívio. “Digo que zerei a carga viral com os remédios antrirretrovirais e zerei o estigma atuando como colaborador da instituição porque, mesmo se eu fosse soronegativo, a associação que fazem pelo fato de eu trabalhar lá é muito sintomática. Todo mundo acha que vivo com HIV só por trabalhar lá. De certa forma, me alivia um pouco, já que não preciso falar sobre ser ou não positivo. É quase que subentendido, principalmente para quem tem dúvidas”.
Na pandemia da Covid-19, as PVHA fazem parte do grupo prioritário no recebimento das doses e, como imunossuprimidos, estão recebendo a quarta dose, de reforço. A situação gerou preconceitos. “Acabei falando para mais pessoas sobre ser uma PVHA por conta da imunização contra a Covid-19. Isso gerou alguns comentários desagradáveis por parte de algumas pessoas, como, ‘ah, eu já sabia’, e outras coisas semelhantes”.
André se diz tranquilo quanto à sua sexualidade e por ser uma pessoa que tem muitos parceiros, mas a situação “parece dar motivos para as pessoas justificarem o fato de eu ter me infectado. Entendo em partes, mas enfim, basta ter uma relação desprotegida para que isso aconteça.”
Falando sobre vulnerabilidades e comparando com a Covid-19, André diz que “a maior parte da população está vulnerável a este vírus, assim como estão vulneráveis ao coronavírus. Existe muito moralismo e hipocrisia sobre o sexo, e isso implica diretamente como as pessoas encaram e julgam as doenças e infecções sexualmente transmissíveis”.