*Publicado originalmente no jornal O Globo

Nas últimas quatro décadas, a ciência trilhou um caminho brilhante na lida com o vírus HIV. Em uma via, foram criados testes confiáveis e ágeis. Paralelamente, cientistas conseguiram colocar no mercado — e nos sistemas de saúde — dezenas de medicamentos antirretrovirais, que inibiam a ação do agente infeccioso no organismo, o que permite aos pacientes (que seguem o tratamento com rigor) vivam plenamente e com saúde, longe da síndrome da imunodeficiência adquirida, a Aids.
Mais recentemente, a medicina se vê diante de uma nova e fantástica revolução: um pequeno grupo de pessoas que apresenta a remissão total, algo próximo da cura, para o contato com o vírus. Entre eles, está o norte-americano Paul Edmonds, de 68 anos, que passou por um dificílimo transplante de células-tronco com material de outra pessoa — que tinha o organismo com uma mutação resistente ao HIV. Transplantado há cinco anos, ele está há três sem tomar os medicamentos antirretrovirais. Quando chegar aos cinco, poderá ser considerado totalmente curado do vírus, que segue sem qualquer sinal de aparecimento em seu organismo até agora.
O tratamento, delicado e custoso, só foi possível porque Paul também buscava saída para outra doença séria: o quadro de leucemia mieloide aguda, um tipo de câncer no sangue. Recuperado dos dois problemas de saúde, o artista plástico quer levar ao mundo sua história de esperança. Ao GLOBO, ele falou sobre como se sente agora, do estigma em relação ao HIV e de sua jornada dentro do City of Hope, um dos maiores centros de tratamento do câncer do mundo, localizado em Los Angeles, nos Estados Unidos.
 

Como você está agora?
Me sinto maravilhoso. Já faz cinco anos desde que fizemos o transplante, me sinto ótimo. Sou considerado curado para a leucemia e o HIV segue em remissão. Está tudo ótimo.
Como é sua rotina? Tem que fazer muitos exames ainda?
Vou fazendo um acompanhamento ao longo do caminho. No começo, passava por exames em todas as semanas. Depois para uma vez a cada catorze dias e então uma vez a cada três semanas, uma vez ao mês. Agora faço uma vez a cada seis meses. Em breve, assim espero, será só uma vez ao ano. Tenho que viajar cerca de duas horas para chegar ao hospital e ver o doutor, não é tão fácil.
Como reagiu quando recebeu o diagnóstico de HIV?
Recebi meu diagnóstico para o vírus HIV e para Aids (a síndrome que causa imunodeficiência após a infecção não tratada pelo vírus) porque minha contagem de células T CD4 estava muito baixa, em 1988. Na época, comecei com o AZT, pois era a única droga disponível naquele ano. Foi bem quando abaixaram a dose do medicamento pela metade, sou grato por terem feito isso. Acho que perdi muitos amigos por conta da toxicidade desse tipo de droga. Mas era um medicamento muito difícil de lidar, as drogas no começo (para HIV) eram muito ruins, os efeitos eram muito severos. Elas começaram a melhorar em 1990. Quando fui diagnosticado com HIV as pessoas costumavam viver somente cerca de 2 anos após descobrir o vírus. Então, eu fui sortudo.
E o diagnóstico de leucemia?
Eu sempre via meu médico para controlar o HIV, a cada três meses fazia exames. Em junho de 2018, algo parecia errado. O meu médico me encaminhou para um hematologista que identificou que eu tinha síndrome mielodisplásica (um problema relacionado à falência da medula óssea). Nessa época eu morava em São Francisco, mas decidi ir à Los Angeles, para o City of Hope (um hospital e centro de pesquisa clínica). Pouco antes descobri que a síndrome havia evoluído para leucemia mieloide aguda. Poucos depois do diagnóstico começamos a quimioterapia, o que ocorreu entre outubro e janeiro. Em fevereiro de 2019, porém, fizemos o transplante de medula óssea. Acho que por conta do meu diagnóstico de HIV, que convivi por tantos anos, consegui aceitar melhor e estava um pouco mais preparado para lidar com algo assim. Mesmo com a quimioterapia eu me dei bem. Não foi tão ruim quanto eu esperava e nem tão difícil quanto os primeiros medicamentos para HIV.
Qual o procedimento de um transplante de células-tronco?
É parecido com uma transfusão de sangue. Levou algo como 30 minutos. Não senti nada, sabe? Não fiquei doente, ou algo assim. Eles (os médicos) não sabem como você irá reagir. É bem arriscado, se algo não der certo o seu corpo pode rejeitar. Há problemas que podem até ser fatais. Mas não passei por nada disso. Tive um quadro de doença do enxerto contra hospedeiro (uma complicação comum a transplantes do tipo), algumas aftas e os olhos ficaram um pouco secos, foi apenas isso.
Sente o corpo diferente?
Meus exames melhoraram muito, tanto a função do fígado e do rim. Eles não estavam péssimos, mas estão ainda melhores.
Como foi tomar a decisão de aceitar um procedimento tão inovador e extremo? Você poderia seguir por um caminho mais conservador…
Eu não tinha muita opção. Era fazer isso ou não fazer nada e eu provavelmente não iria sobreviver. Foi automático, ao receber a proposta disse “com certeza, vamos nessa”.
Além da sua decisão pessoal, seu tratamento oferece uma grande contribuição para a ciência, para a humanidade. Qual é sua sensação sobre isso?
Me levou um tempo até entender o que eu represento para muitas pessoas. Tenho participado de conferências sobre HIV, para algumas pessoas (médicos e cientistas) sou um exemplo do que elas estão trabalhando para o que aconteça. Tem sido uma grande experiência. Passarei, inclusive, meu aniversário de 69 anos, no próximo mês de julho, na conferência internacional de HIV em Munique, na Alemanha.
Chegou, na sua vida, a lidar com estigma e preconceito por ter sido diagnosticado com o HIV?
Me mudei para São Francisco em 1976. Em 1980, as pessoas começaram a ficar doentes e ninguém sabia direito o que estava acontecendo. Chegaram a chamar de “câncer gay”. Aquela foi uma época realmente assustadora, as pessoas tinham medo umas das outras. Foi um tempo muito sombrio. Foi por isso que só fui me testar em 1988, demorei porque achava possível que o teste desse positivo. Naquele ano, meu pai morreu de câncer de pulmão e notei que se soubéssemos antes do quadro dele, talvez seria possível fazer algo a mais. Então decidi me testar. O estigma esteve presente, isso sempre foi uma luta, mas melhorou.
Qual foi o papel de seu marido em seu tratamento?
Nos conhecemos em 1992 em São Francisco, estamos juntos há 32 anos. Passamos por tudo juntos, nos apoiamos e nos cuidamos. Ele também é HIV positivo, ele não sabia quando nos conhecemos, mas se testou. Porém ele está muito bem, claro.
Agora você sabe que terá muitos anos com saúde. Como deseja viver?
Quero continuar o que estou fazendo agora. Seguirei pintando quadros e conversando em conferências sobre HIV. Há algumas semanas estive na Universidade da Califórnia, em San Diego, com uns 300 estudantes e eles ficaram muito entusiasmados em conversar comigo, passaram umas duas horas fazendo perguntas.
Chegou a conhecer seu doador?
Enviei uma carta, mas ele prefere se manter anônimo. Eu respeito isso. Tudo que sei é que trata-se de um homem dos Estados Unidos que hoje deve ter uns 40 anos. Adoraria conhecê-lo, mas respeito o desejo dele.
Suas redes sociais são cheias de pessoas querendo saber de seu tratamento. Recebe muitas mensagens?
Sim, tudo é muito positivo. Só recebo boas mensagens, é algo maravilhoso. Sinto que dou esperança às pessoas.

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Foto: Divulgação/City of Hope